ZERO*
“Quem é que tu pensas que és?”
Sempre que eu ouço essa pergunta tremo nas bases.
“Quem é que tu pensas que és?”
Nunca sei se a pergunta é a sério ou uma mera figura de
retórica.
“Quem é que tu pensas que és?”
Na dúvida, minto. Digo que penso que sou o que não sou.
E depois passo a ser.
É por isso que já fui mergulhador nas Antilhas, mensageiro
na Índia, piloto da Nasa.
Já fui serial killer em Detroit, pop star na Cochinchina, bombeiro,
chulo, Bispo de Braga.
Já fui diplomata depois de uma crise matrimonial com uma
dona de bar no Arkansas.
Fiz carreira, cheguei a cônsul na Jamaica.
Mas, um dia, numa discussão de trânsito, alguém me
perguntou quem eu pensava que era e passei a ser
investigador científico renomado.
Estava a pesquisar uma misteriosa virose que atacava uma
minoria étnica, quando o meu irritadiço chefe me obrigou a
dizer que eu era um palhaço.
Desde então segui a vida num circo, onde as crianças vinham
rir das minhas piadas.
Viajei meio mundo, fui à Rússia, ao Ceilão, à ex-Jugoslávia.
Casei com a mulher barbada e tive três filhos: um trapezista,
um mágico e um anão.
Mais uns anos de trabalho e conseguiria dinheiro para comprar
a minha própria tenda.
Até que um dia, o domador, numa inexplicável crise de ciúmes
pelo leão, fez-me a pergunta fatídica: “Quem é que tu pensas
que és?”
E então eu respondi que era apenas um publicitário com
pouco menos de quarenta anos, cliente especial de uns dois
ou três bancos, que adora filmes, livros, i-pods e coisas
moderninhas, que não sabe se acredita em Deus, mas que
tem a certeza que Deus acredita nele, que tem poucos amigos
reais e muitos imaginários, que tem medo de chegar ao fim
da vida sem ter feito nada que valha realmente a pena
esquecer, que tem a mania de que é uma daquelas pessoas
sensíveis que a gente encontra nos bares ou naquelas festas
de casamento em que não conhecemos os noivos e que
costuma dizer que o mundo é duro, injusto e cruel, enquanto
pede mais um gin tónico com um ar superior, o tipo de gente
que não dá para confiar, pois ao mais pequeno descuido
apanha a sua alma, arranca-lhe os olhos, e aproveita-se dela
para escrever um conto sem lhe pagar mil contos.
Sempre que eu ouço essa pergunta tremo nas bases.
“Quem é que tu pensas que és?”
Nunca sei se a pergunta é a sério ou uma mera figura de
retórica.
“Quem é que tu pensas que és?”
Na dúvida, minto. Digo que penso que sou o que não sou.
E depois passo a ser.
É por isso que já fui mergulhador nas Antilhas, mensageiro
na Índia, piloto da Nasa.
Já fui serial killer em Detroit, pop star na Cochinchina, bombeiro,
chulo, Bispo de Braga.
Já fui diplomata depois de uma crise matrimonial com uma
dona de bar no Arkansas.
Fiz carreira, cheguei a cônsul na Jamaica.
Mas, um dia, numa discussão de trânsito, alguém me
perguntou quem eu pensava que era e passei a ser
investigador científico renomado.
Estava a pesquisar uma misteriosa virose que atacava uma
minoria étnica, quando o meu irritadiço chefe me obrigou a
dizer que eu era um palhaço.
Desde então segui a vida num circo, onde as crianças vinham
rir das minhas piadas.
Viajei meio mundo, fui à Rússia, ao Ceilão, à ex-Jugoslávia.
Casei com a mulher barbada e tive três filhos: um trapezista,
um mágico e um anão.
Mais uns anos de trabalho e conseguiria dinheiro para comprar
a minha própria tenda.
Até que um dia, o domador, numa inexplicável crise de ciúmes
pelo leão, fez-me a pergunta fatídica: “Quem é que tu pensas
que és?”
E então eu respondi que era apenas um publicitário com
pouco menos de quarenta anos, cliente especial de uns dois
ou três bancos, que adora filmes, livros, i-pods e coisas
moderninhas, que não sabe se acredita em Deus, mas que
tem a certeza que Deus acredita nele, que tem poucos amigos
reais e muitos imaginários, que tem medo de chegar ao fim
da vida sem ter feito nada que valha realmente a pena
esquecer, que tem a mania de que é uma daquelas pessoas
sensíveis que a gente encontra nos bares ou naquelas festas
de casamento em que não conhecemos os noivos e que
costuma dizer que o mundo é duro, injusto e cruel, enquanto
pede mais um gin tónico com um ar superior, o tipo de gente
que não dá para confiar, pois ao mais pequeno descuido
apanha a sua alma, arranca-lhe os olhos, e aproveita-se dela
para escrever um conto sem lhe pagar mil contos.
E, o pior, é que dessa vez tenho a impressão de que eu disse
a verdade"
a verdade"
* Edson Athaíde in "O Endireita"
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