Uma rua, um carro, um motorista, um instante... e nesse mesmo instante, um marco na vida, a aparição súbita de uma cortina sobre a sua visão e a dura percepção da realidade, estava cego! Não era a escuridão de uma cegueira normal, de facto agora para si, e para todos aqueles que se seguiram, tudo era branco. Um surto, uma epidemia, os especialistas chamaram-lhe cegueira branca... Assim começa, de forma resumida, uma das melhores obras literárias portuguesas, que após ter sido adaptada por Fernando Meirelles brevemente dará entrada nas salas de cinema nacionais.
Lançada no ano de 1995, Ensaio sobre a cegueira, foi o título eleito por José Saramago para alimentar o imaginário dos seus leitores. À semelhança de muitas outras obras do autor, esta encontra-se repleta de situações metafóricas e até hiperbolizadas que podem ser assemelhadas à realidade mundial, mais especificamente à realidade social, funcionando como um alerta para a degradação constante dos seus princípios. Assim, mais do que um livro acerca de um ataque de cegueira que assola a generalidade da população, é um livro acerca da vaidade, da luxúria, da descoberta, da criminalidade, da desordem, da hierarquização, da luta, do preconceito, da riqueza, do lucro, da mentira, do individualismo, da perda de uma inocência que jamais existiu...
Com Ensaio sobre a Cegueira, Saramago sacode o pó que se acumulou sobre a visão turva da sociedade e põe a descoberto a mais pura das realidades. Ao fechar os olhos à sociedade abre janelas, permitindo que pela primeira vez a pobreza das almas veja a luz do dia. Poderá mesmo dizer-se que é ao retirar-lhes a visão, que se mostra a verdade dos seus ideais ao mundo, como se de súbito cada personagem caísse num individualismo extremo e demonstrasse sem pudores aquilo que antes lhes ia na mente e agora lhes vai "nas mãos".
Porque quem não sabe é como quem não vê ou neste caso, quem não vê é como quem não sabe, e assim todas as acções, apesar de assumidas perante outrem, são dotadas de um certo secretismo, porque se acredita que ali todos estão na mesma situação, ninguém vê... e porque naquele momento já ninguém conhece ninguém.
Contudo, no que concerne à intenção aparente deste livro, aos géneros literários que aborda, não é a Crítica mas sim o Romance que ocupa o suposto lugar principal. Este, que é conseguido de forma soberba através do relato de uma mulher, a única que não perde a capacidade de ver, e que ao seguir a pureza do seu amor assiste à decadência de um mundo que sempre existiu mas que nunca ninguém o viu... É também, através da existência desta mulher que toda a narrativa se torna ainda mais coesa, sendo que é a sua capacidade de ver que permite o relato fiel e visual de todas as situações e são os seus valores que nos guiam enquanto consciência moral ao longo de todo o livro.
No que diz respeito à dificuldade sentida por alguns leitores, esta não se prende, com facto de ser ou não uma leitura pesada, mas sim com a capacidade de aceitação e interiorização de uma realidade que se encontra despida de ilusões fantasiosas e descrita de forma dura e crua, não poupando ninguém à crueldade e violência de algumas das suas passagens.
Com a aproximação da estreia do filme, que é já no próximo dia 13, e a controvérsia gerada, advinha-se um grito de liberdade, a genialidade e exuberância de um livro que irá saltar do abandono de uma das imensas prateleiras da Fnac para a desprestigiante e deveras desconhecedora preferência mundial.
Em suma, e para todos os que criam estereótipos dos romances renegando-os à partida, esta é a prova de que os romances podem ser e conter muito mais do que uma simples e detalhada história de amor! E se este não é também um hino ao amor pela alma gémea, é certamente um reparo ao amor pela vida e por todas aquelas que coisas que olhamos mas não vemos, que não vemos e por isso não reparamos!
*in ensaio sobre a cegueira
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