Tuesday, June 16

A última fronteira


A dez mil metros de altitude e com o céu limpo, durante a noite, parece que toda a floresta se prepara para arder em chamas. São as queimadas, quase todas sem licença nem controlo, com que os sem-terra ou os grandes produtores agrícolas vão devastando, dia após dia, extensas áreas da selva amazónica para a converterem à agricultura. Há qualquer coisa de profundamente inquietante naquele espectáculo de centenas ou milhares de fogueiras ardendo lá em baixo: o pulmão do planeta arde, enquanto os chineses esperam pela soja ou pelo gado que ali há-de nascer e ser criado, onde antes havia a floresta tropical.

Por estes dias, o presidente brasileiro Luís Inácio 'Lula' da Silva tem na sua mesa uma proposta do Congresso, a MP 458, que, se obtiver a sua assinatura, representará um retrocesso de trinta anos numa política já de si bastante condescendente de preservação da mata amazónica. A proposta, assim como a situação actual na Amazónia, foram, a semana passada, alvo de uma condenação violenta e concertada de todas as organizações ambientalistas mundiais e brasileiras, com o WWLF e a Greenpeace à cabeça. Mas 'Lula', é fácil de perceber, está mortinho por assinar a lei. No seu espírito, não se trata de uma luta entre os 'ruralistas' e os ambientalistas, mas entre os sem-terra e os radicais ecologistas. A Amazónia é grande e Lula não vê grandes razões para que ela não vá sendo amputada aos poucos para satisfazer a "legítima ambição" dos 25 milhões de brasileiros que vivem nas margens da grande floresta, ansiando por uma oportunidade de terra, de criação de gado e de fixação na zona. E 'Lula' compreende bem o que lhes vai na cabeça: basta-lhe recordar-se do seu passado de "emigrante do pau-de-arara", fugindo com a mãe e os irmãos de um Nordeste onde só havia seca e fome para vir procurar outro futuro nas grandes cidades. Esse futuro ele encontrou-o, como trabalhador metalúrgico, sindicalista, deputado e, finalmente e contra toda a previsibilidade, Presidente da República. Tem sido, na minha opinião de observador externo, o melhor Presidente que o Brasil já teve desde a ditadura dos generais, mas é demasiado esperar dele uma visão política que vá além das satisfação, a qualquer preço, das necessidades básicas daqueles que lhe são próximos. O 'povo' de Lula é o que quer uma oportunidade, uma terra para cultivar e criar gado e, se isso, além do mais, favorece a balança comercial e dá de comer a mais gente, porque não há-de a Amazónia pagar a factura? Só nos dois primeiros anos do Governo Lula, em 2003 e 2004, 51.000km2 da floresta amazónica foram ocupados por 'posseiros', à revelia da lei. São esses invasores que a MP 458 vem agora regularizar, permitindo-lhes adquirir, a preços favoráveis, sem licitação e com condições de pagamento excepcional, as terras que eles roubaram ao património colectivo brasileiro que é a Amazónia. Mas não se pense que são apenas os pequenos agricultores sem terra os beneficiados: são todos, as grandes empresas produtoras de gado, os grandes fazendeiros agindo a coberto de testas-de-ferro, gente que nem sequer vive na Amazónia e que bem podiam dedicar-se à criação de gado em tantas outras extensas regiões do infindável território brasileiro. Só que o ecossistema da Amazónia - justamente devido à presença da floresta maciça - garante condições de fertilidade dos solos que são uma tentação a que ninguém resiste. Não resistem os que lá vivem, os produtores de gado e os políticos locais, os tais 'ruralistas', que dependem do voto dos que lá estão. E não resiste o Presidente, mesmo que o não quisesse e porque preso dentro de um absurdo sistema constitucional onde a sua base política maioritária não representa mais do que 15% do Congresso. E, por isso, não é apenas a Amazónia que todos os anos é esquartejada mais um pouco: nos últimos três anos, até a 'preservadíssima' Mata Atlântica - que outrora cobria todo o litoral brasileiro e entrava pelo interior, até ao coração de Minas, por exemplo - perdeu mais 100.000 hectares para a exploração pecuária.

No ano passado, houve um deputado norueguês que lançou o escândalo e a indignação nacionalista no Brasil, ao propor que a comunidade internacional, através das Nações Unidas, comprasse a Amazónia ao Brasil, para garantir a sua preservação. É preciso lembrar que a Amazónia não é apenas o território onde vivem algumas das últimas tribos de índios primitivos do planeta, não é apenas a maior reserva de diversidade de fauna e flora à face da terra, com inúmeras aplicações na medicina e outras áreas, não é apenas a maior bacia hidrográfica que se conhece: é também e sobretudo, um terço das reservas de oxigénio de todos os habitantes deste planeta. No dia que a Amazónia desaparecer, nós sufocamos: nós todos, e os brasileiros também.

Mas a proposta que tanto escandalizou o Brasil não é muito diferente, todavia, daquilo que Lula defende: é apenas menos imoral. Há dias, o Presidente brasileiro declarava o seguinte: "Não podemos aceitar o discurso dos países ricos que, enquanto produzem carros da melhor qualidade e comem da melhor qualidade, querem que a gente apenas preserve a floresta para eles terem o oxigénio que pensam que a Amazónia produz. Eles não podem querer que nós apenas preservemos para eles poderem respirar". Logo, concluía ele, "é preciso que os países, que já devastaram todas as suas florestas, comecem a pagar para que a gente preserve as nossas". Ele, Lula, "quer preservar a floresta, mas preciso cuidar dos 25 milhões de pessoas que vivem lá e que querem ter carro e geladeira". Este discurso é um clássico da demagogia terceiro-mundista. Os tais países ricos de que fala Lula - e que no passado, de facto, se comportaram com o Brasil como exploradores das suas riquezas - hoje são quem permite ao Brasil, mesmo em plena crise mundial, manter um superavit da balança comercial e do investimento externo. O que Lula propõe é que o resto do mundo pague ao Brasil para respirar - e porque Deus deu ao Brasil, entre tantas e tantas riquezas mal aproveitadas em benefício de tão poucos, essa imensa riqueza que é a Amazónia. Não é muito diferente do que propunha o deputado norueguês. Só que, enquanto este propunha comprar a Amazónia ao Brasil, Lula propõe apenas alugar o direito de respirar, mas salvaguardando o direito de tudo continuar na mesma, com o Brasil a roubar todos os anos um pouco mais de área à floresta, para que os 25 milhões de pessoas ou de votos tenham carro e 'geladeira'. E como para haver carros tem de haver estradas, o Governo brasileiro prepara-se para aprovar também o sinistro projecto da BR-319, uma via rápida que rasgará a Amazónia de sul a norte, a pretexto de não deixar Manaus isolada por terra do resto do Brasil.

E isto faz o Brasil, num momento em que os grandes predadores ambientais à escala planetária - os Estados Unidos e a China - já deram mostras de começar a levar a sério aquilo a que Lula chama displicentemente o "radicalismo ecologista". Obama está, aparentemente, a inverter de cima a baixo a política grosseiramente ignorante do patético George W. Bush, e os dirigentes chineses começam a aprender com os desastres ambientais causados por projectos megalómanos como a barragem das Três Gargantas e com um crescimento completamente desordenado e selvagem, que no futuro não muito distante haverá um alto preço a pagar por políticas que apenas olham aos interesses imediatos. A história do Brasil é uma sucessão de ciclos baseados numa aposta única em busca de um eterno eldorado que pudesse dispensar tudo o que fosse planeamento, crescimento sustentado, inteligência de gestão: o ciclo do algodão, o do ouro, o da borracha, o do café. Todos acabaram no desastre económico e social, por exaustão natural. É pena que a lição nunca mais seja aprendida.


Por Miguel Sousa Tavares in Expresso.pt - Segunda-feira, 15 de Jun de 2009


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